Daniel Eisenberg e a Produção do Sentido da História a partir de Displaced Person.
Daniel Eisenberg é um cineasta exemplar. O seu trabalho se situa na fronteira das práticas frequentemente julgadas incompatíveis. Ao cinema pessoal, ele confere uma dimensão documentária; à dimensão pessoal ele impõe grades e estruturas formais; ele brinca assim com os gêneros misturando formas frequentemente opostas que fazem alternar ou se sobrepor estratos de discursos distintos. Além disso, esses filmes se caracterizam por uma forte dimensão reflexiva se espalhando segundo vários eixos que vão se conjugar: a questão da história, a presença da história nas paisagens urbanas contemporâneas, a dimensão pessoal nas histórias, a questão da memória e do arquivo, a questão do documento.
Nenhum dos filmes que ele dirigiu até hoje se finaliza numa certeza, numa verdade, mas o filme nos propõe um caminho através dessas instâncias nas quais a cidade e a história são examinadas através de um prisma pessoal que não se impõe como uma visão e uma expressão romântica de um sujeito em busca de sua identidade, embora a questão da identidade seja preponderante [predominante] nesse filme ela não se resume à constituição de uma identidade, mas como se pode entender na trilha sonora de Cooperation of Parts (1987) (Cooperação das partes) «Se eu tivesse que criar minha identidade eu poderia facilmente me encontrar com uma falsa ideia.» Com isso, o cineasta reconhece nossa aptidão quanto a sua produção, mas como o releva justamente Mar McElthatten, nós não somos os únicos detentores e autores de nossa personalidade, da nossa identidade, de fato; nós somos uma cooperação de partes (1). A identidade se revela então uma construção, ela não é dada. « Por onde nós vamos nós não podemos nos desfazer do nosso eu.» Tal é o conteúdo da terceira legenda de Cooperation of Parts sobre um desfile de paisagens tomado da janela de um trem entre a França e a Alemanha e que é retomado oralmente durante a visita de um dormitório de um campo de concentração (Dachau).
Dan Eisenberg vem de um outro tempo, ele começa a fazer filmes a partir de 75 e de outro horizonte cinematográfico, ele é de fato durante vários anos montador de vários documentários para a televisão pública americana em Boston, ele compartilha com cineastas como Ernie Gehr, Yvonne Rainer, James Benning preocupações formais que serão o motor do filme, assim como ele manifesta um interesse pelo documento, o arquivo, como o releva Jeffrey Skoller (2), articulando essas dimensões segundo a forma do ensaio como se encontra em vários cineastas contemporâneos de Chris Marker passando por Chantal Akermen.
Seus filmes se impõem pelas suas formas originais a uma estética da colagem e da justaposição de elementos disparatados que lhes fazem se aparentar ao pós-modernismo, e isso, no uso afirmado do fragmento como referência ‘implícita a qualquer coisa que era no início inteiro’. A questão não é, no entanto, de ir em busca de uma verdade, de uma origem mas a gente trabalha com fatos, fragmentos, estilhaços [pedaços]: restos ou resíduos, para retomar um termo de um dos primeiros filmes do cineasta (Design and Debris 1979 – Design e Resíduos). As questões relativas aos fragmentos, e consequentemente à incompletude são essenciais na medida em que elas criam uma dinâmica, uma linearidade particular que responde mais a uma organização musical que às formas dominantes de narração.
É combinando regimes cinematográficos distintos e os articulando à questão da história através da persistência dos rastros do passado nos arquivos sonoros e fílmicos que o cineasta exerce toda sua atividade criadora moldando novas formas de pensar em cinema. Nós veremos que o uso dos planos longos em Something More than Night (2003) permite ver o mundo de maneira diferente. Como ele reconhece: «Vindo de um tempo onde o cinema de família e os arquivos pessoais estavam no centro de várias discussões críticas, eu me dei conta da ausência de imagens e de clara narração do passado no seio da minha família. Meu trabalho cinematográfico dirige-se a essa falta notando pomposamente que o vazio, ou mais exatamente trocando a ausência com imagens que evocariam as que nunca foram feitas. (3)» Nascido em Israel, de pais tendo sobrevividos ao campo de concentração, Daniel Eisenberg se vê como uma estranheza estatística em relação ao número de pessoas exterminadas e dos sobreviventes; ele não deveria ter existido.
Três filmes trabalham assim a questão da história em relação à Segunda Guerra Mundial, no que diz respeito ao nazismo e aos campos de concentração. Displaced Persons, Cooperation of Parts e Persistence (Persistência) assumem esta história através a apropriação de arquivos sonoros fílmicos, mas também indo filmar campos na Alemanha ou ainda voltando nos lugares de moradia de seus pais na Polônia , mas também em Berlim. Nesses três filmes a tecelagem de elementos disparatados serve de trama às evocações de uma história que nunca será verdadeiramente contada, teria mesmo uma para contar? Os filmes implementam através uma série de elementos serializados e distribuídos segundo as variações e transformações do documento original, um conjunto de blocos de informações a partir das quais nós podemos iniciar um raciocínio. A questão é «criar um filme dentro do qual o espetador está convidado a ser tão ativo quanto o diretor.»(4). Displaced Persons trabalha a partir de quatro fontes de informações; duas sonoras e duas visuais. De um lado um trecho de uma conferência radiofónica de Claude Levi Strauss sobre os mitos e a ciência, do outro um movimento de um dos quartetos Rasoumosvky (o número três, som andante) de Ludwig Van Beethoven, enquanto na imagem são os trechos de sequência feitas pela Deutsche Wochenshau o dia 25 de junho de 1940, durante a visita de Hitler em Paris ao amanhecer,
reusado por Marcel Ophuls em Le Chagrin et la Pitié (a Tristeza e a Pena), assim como uma sequência de dois meninos numa bicicleta (5), tirada de um documentário sobre Nova Iorque dos anos 30.
Notemos que quase todos os elementos constituindo o filme são apresentados de maneira fragmentada, eles são analisados, triturados, auscultados. A conferência de Levi Strauss é cortada de modo que ela se torna antes de tudo uma evocação de experiências pessoais e lembranças, ela não tem o mesmo sentido que o que se pode achar a lendo. Do mesmo modo, os trechos de filmes são refilmados, detalhes são valorizados, o grão da película passa a dominar, as legendas viram palavras. As legendas se tornam um elemento constitutivo de contraponto na tecelagem da melodia que o cineasta faz ouvir. Eles parecem comentar ou completar um pedaço de frase de Levi Strauss, induzindo o equívoco. Por exemplo, «depois do momento no qual Levi Strauss diz: «em terceiro lugar…», eu corto o som e a continuidade prossegue com a legenda «Cedo de manhã…» O título não é dele claro, mas é de Anthony Eden, que fala de alguma coisa que não tem nada a ver com as imagens (6)».
A presença de legendas na imagem, manifesta, inicialmente, a apropriação e a transferência de um discurso sobre a imagem como pegada de uma outra história e de outra interpretação. A sua inclusão inscreve tanto a reapropriação como a releitura de uma representação da história. Nós estamos presenciando um trabalho se apropriando das fontes e que marca simultaneamente o seu caráter de déjà-vu (já visto), já usado, bom para reciclagem. Nesse filme, trata-se de um recondicionamento de elementos, que já servirão a contar uma outra história, sem dúvida próxima, mas porém distante, pois ela se pensava (esta história) mais objetiva na sua finalidade documentarista. Com Displaced Persons, nós estamos na presença de um desvio efetuado sobre o modo menor, a entender aqui como subjetivo. Modo que faz história, ao beneficio do pessoal mediatizado pelo discurso de Levi Strauss e que parece incarnar-se na visão fugitiva, mas repetida dos dois meninos passando de bicicleta. É nesse sentido que se pode falar de um uso pós-modernista. De fato, na mistura das fontes, vários níveis de discursos se entrelaçam, convivem e no qual não é mais a questão do funcionamento do dispositivo que é prioritário mas as interações e relações plurais que se pode fazer com diversas fontes documentárias. Deslize que faz da metalinguagem uma língua privilegiada e põe em relação o trabalho cinematográfico do cineasta com seus pares tal Bruce Conner, Ken Jacobs ou Ernie Gehr que cada um deles tinha trabalhado, do seu jeito, com found footage, os dois primeiros privilegiando a análise do documento segundo as modalidades de investigações óticas particulares que vão da refilmagem desacelerada ao zoom nos detalhes da imagem, passando pelas variações e repetições. Essas estratégias são empregadas nos três filmes relativos à Shoah.
A multiplicidade dos empréstimos permite digerir a história, em Displaced Persons isso se efetua através das imagens e os sons que quase pertencem ao domínio público enquanto em Cooperation of Parts isso se efetua a partir de uma viagem na Europa feita pelo cineasta a fim de ver os campos nos anos oitenta; depois de ter se tornado um lugar de memória, um museu.
As palavras não conhecem as fronteiras
A loucura não é a mesma para todos os homens
Os olhos sempre são crianças
Feliz é o país que não tem história
A inscrição da subjetividade está dada pela câmera segurada na mão que varre tanto paisagens parisienses como monumentos na Alemanha, tanto os campos de concentração como ruas na Polônia. Os movimentos de câmera fazem que o olhar se espalhe de maneira instável, pouco seguro, como se se andava em areia movediça, da história e do individuo. Entre as culturas e entre os eventos da história. Entre as imagens e os sons ou a voz, relações, quase um dialogo se constituem, mas, mais frequentemente, trata-se de uma justaposição que da mesma maneira que um quebra-cabeça permite o surgimento de imbricações significantes. Além dos provérbios, encontra-se um conjunto de textos de Roland Barthes, Edmond Jabés, Theodore Adorno, Franz Kafka. Todos esses fragmentos significantes não nos permitem constituir um sentido único, mas escapadas a partir das quais nós tentamos produzir sentido, sentidos, uma história? O filme torna-se então uma tentativa de constituição de sentido, o filme é o processo desta tentativa.
Mais uma vez, a música tem um papel especial no filme. Se em Displaced Persons o andante do quarteto está ouvido quase integralmente e parece basear a retomada de certos temas visuais; a música na sua dimensão melódica, aparece em Cooperation of Parts somente em uma das últimas seções do filme, na qual nós percorremos diferentes alojamentos de um campo de concentração. A escolha musical não é anedótica, trata-se de uma das partes do “Gaspard de la Nuit (Gaspar da Noite), le “Gibet” (o patíbulo) de Maurice Ravel (7). O poema evoca as últimas impressões de um enforcado assistindo a um pôr do sol. 153 oitavas de si bemol são repetidas durante o trecho todo como o tinir do sino impondo um caráter pálido à peça musical, marcando as imagens do selo de incomensurabilidade da solução final através a deambulação no campo. Deambulação pelo menos estranha na medida em que a câmera varre os espaços como à busca de uma ausência, de um tempo passado. Se achará em Persistence (Persistência) uma busca similar na qual os planos fixos, ou lentos, se sucedem uns após os outros mostrando as ferramentas de experimentação do laboratório de Sachenhausen. A música dramatiza então o empreendimento lhe dando uma dimensão implacável da parte da metonímia da repetição do acorde. O movimento da câmera é a resposta do cineasta a o que ele descobre desses lugares.
Com Persistence Film in 24 absences/presences/prospects (1997) (Persistência Filme em vinte e quarto ausências ̸ presencias ̸ prospectos) Berlim é de novo revisitada, durante uma estadia mais demorada na cidade. O filme torna manifesto o rastro da história através seus monumentos em um momento onde a Queda do Muro de Berlim não é mais a sinfonia dinâmica de Walter Ruttmann, ela incorpora sua história que é também uma história da destruição e de suas representações. A ruina é então o que sobra da cidade tão filmada de avião pelos americanos como por Roberto Rosselini na Alemanha ano zero ou simplesmente pelo cineasta que confronta essas ruinas com outras representações picturais desta. Ruinas gloriosas! (Berlim leste, maio mil novecentos e oitenta e três, três de julho de mil novecentos e noventa e um, nós começamos de meio-dia) voz em off no mesmo sítio a continuidade espacial. Elisabethskirche é preservada enquanto a continuidade temporal desapareceu) « A ruina encoraja o devaneio e confere uma certa poesia à paisagem (Flaubert Dicionário das ideias feitas)
Neste filme a voz e as histórias produzem uma constelação de histórias que são pontos de âncora da cidade, de um ser na cidade.
« With our naïve arrival into a world that’s already fragmented and in ruin, it takes quite some time to realize that this fragmentation is to us a normative condition. »
(«Com nossa chegada ingênua em um mundo que já está fragmentado e em ruina, precisa-se de um tempo para realizar que essa fragmentação é para nós uma condição normativa»)
Custo da construção de um palácio em voz off sobre as imagens deste lugar hoje: em 1991 (mil novecentos e noventa e um), visão de uma ruina sem preocupação: The Hills of Ruins (As colinas das ruinas) é o som que une os tempos, assim o sussurro de uma floresta reúne um panorâmico sobre prédios de uma rua em travelling lateral nas ruas de uma Berlim totalmente em ruinas. No passado, os rastros do presente: intertítulo Cíté en ruines (Cidade em ruinas) 1945/46 1991/92. A cidade se descobre através os documentos filmados, arquivos, ficções, a presença de seu passado assina seu advento futuro através de seus monumentos. É interessante notar que a questão do monumento, de sua destruição durante a queda dos regimes socialistas fazem surgir questões quanto a maneira de escrever esta história de reescrever a história à luz do advento. Disgraced Monuments (Monumentos desgraçados) (1994 – mil novecentos e noventa e quatro) de Laura Mulvey e Mark Lewis fazem tais questionamentos como o faz também, sobre Viena, o filme de Yvonne Rainer After Many A Summer Dies a Swann (2002) (Também o Cisne Morre [tradução oficial do livro de Aldous Huxley]) filme mais tardio e muito mais próximo à abordagem de Daniel Eisenberg do que parece de primeira. O tempo da reconstrução devida à guerra prefigura essas construções a vir segundo a reunificação e inscreve na pedra, os cinquenta anos de divisão como uma anomalia, uma incongruência, um retardo na implementação da transformação. A duração dos planos, seus prolongamentos, permite descobrir na superfície das imagens rastros de um passado, de uma ausência: um campo em ruina. O arquivo e suas representações codificam a paisagem contemporânea, sua pegada extravasa através das fachadas, das paredes, das paisagens, como os cadáveres que impregnam a observação de uma pintura de Gaspard David Friedrich.
Neste prolongamento, nesses destroços pressente-se Sokurov e sua câmera vasculhando as paisagens e os destroços, e mais especificamente nos planos sobre as bases soviéticas com as cabines dos helicópteros e fuselagens abandonados, desmantelados.
O trem, mais uma vez, é inseparável dessas deportações, ele não somente é o denominador comum como ele é o vetor de um além, marca de sua radicalidade: a alteridade. Se o trem junta os lugares, do seu lado as ruinas permitem cruzar as épocas mostrando suas similitudes ou diferenças ao longo do tempo convocando por isso mesmo a ideia de restauração, retomada, quase uma injunção à repetição, que se torna por isso mesmo atemporal. Desliza-se assim furtivamente da análise à crítica.
É conjugando as sequências de diversas proveniências sem retirar suas especificidades de documentos, de arquivos, de representações em segundo sentido que o cineasta trabalha a questão da memória, como plural. Como não podendo ser o fruto da germinação de um só, mais da conjunção de um conjunto de fatores que deixam uma grande parte a múltiplas interpretações. O sentido então não é único, ele não se limite à História ele permite, pelo contrário, de conversar com ela. Daí a importância de alguns dos lemas que entoam o filme.
«Desde que nosso sentido da narração foi construído a partir de estilhaços de inúmeras narrações, existe uma afinidade natural a abrir as formas, a usar estruturas complexas, interpretações múltiplas, divergentes e diversas. Essa formulação estética procura expressar uma compreensão das condições culturais que são mais amplas que o estado de espírito de uma pessoa. Não se trata apenas de uma expressão, mas de uma análise e por extensão uma crítica.»(8).
A música é um elemento essencial de Persistence. Se todas as imagens são diretamente ligadas a Berlim, não é o caso da escolha das músicas, de fato, são peças do século 20 de compositores italianos. A escolha de Ferruccio Busoni (Doktor Faust – Doutor Faust) e de Luigi Nono (La lontananza nostalgica utopica futura – A distância nostálgica utópica futura) (9) explica-se pela natureza polifónica de suas escritas e enquanto à peça de Nono em relação à constituição de diálogo que promove a peça entre um solista violonista e oito speakers divulgando violino e diferentes tipos de objetos sonoros. Essas músicas modelizam a tecelagem geral do filme que implementa uma polifonia audiovisual, e na qual os elementos são eles mesmos múltiplos. Da polifonia de contra ponto de Busoni, ou encaminhamento ‘madrigalístico’ de Luigi Nono, o cineasta talvez achou um equivalente nesses filmes que fazem ouvir uma pluralidade de vozes, um jogo sutil de linhas melódicas que exploram afetos e histórias particulares, deslizando da narração pessoal à considerações históricas. É essa arte da montagem dos filmes relatando a história de Daniel Eisenberg que o aproxima do pós- modernismo, o qual tem renegado, segundo a análise de Jean-François Lyotard, a grande narração ao benefício de narrações menores e fragmentárias.
Os filmes mais recentes de Daniel Eisenberg vão se afastar desse entrelaçamento entre histórias, arquivos e subjetividade que conjugaram tempo histórico e tempo subjetivo, por que eles vão afirmar o espaço urbano como moldando os comportamentos e a rotina dos seus “habitantes”. O uso do espaço se inscreve na repetição dos gestos, na volta aos lugares do cotidiano, do trabalho. Progressivamente de filme em filme o presente se impõe, e a história (com todas suas histórias) se apaga em benefício da circulação dos seres e dos objetos fabricados (mercadorias). Em Something More than Night 2003 o espaço urbano, a arquitetura é quase o cenário (de cinema) de uma ocupação, de uma atividade enquanto em The Unstable Object 2012 (O objeto instável – dois mil e doze), a produção da mercadoria, carro, pêndulo…define o comportamento. Em um caso, trata-se de uma ocupação do espaço, enquanto no outro a atividade condiciona o espaço. Imperceptivelmente passe-se do local (a especificidade do lugar) ao global via a produção de mercadorias (militarização, higienização das condições de trabalho, na medida em que ela as inscreve.
Esse movimento em direção ao contemporâneo, menos diretamente impregnado do passado transforma a questão da representação e impõe um novo uso do filme, mais próximo ao documentário. Em Unstable Object, a relação entre o que é filmado e o cineasta não é mais evacuado como ela o era em Something More than Night, no qual as tomadas feitas à noite convocam imediatamente outros registros, mas sobretudo esconde o filmador, em relação aos lugares e pessoas que os ocupam, os percorrem…
A abertura do filme é uma interrupção do olhar, em um espaço enclausurado, um escritório dentro do qual acontece uma conversa. Participa-se de um evento como por efração, quase sem a gente perceber. Assim vão sendo construídas pseudo continuidades entre os lugares e os eventos que lá acontecem, até o momento onde se nota que não existe realmente continuidade temporal, na medida em que os planos foram filmados em estações diferentes. De uma estação fria ao verão, da rua a uma fila de compra de ingresso de greyhound (corrida de cachorro)…
A irrupção de uma sequencia de um jovem menino dormindo, dá ao filme uma outra dimensão, na qual se abole a separação da captação até aqui distante, mostrando um espaço privado, nós estamos na casa de alguém. Um momento de intimidade se dá a ver, mais uma vez trata-se de uma irrupção no campo privado de uma família (a do cineasta?). O pessoal se inscreve assim como inseparável da sociedade.
Do mesmo modo quando se descobre que um alto forno dá diretamente numa rua, que nada o separa realmente do espaço público, isso surpreende. Aqui, a grande cidade não está mostrada de maneira dinâmica como é o caso de Berlim, sinfonia de uma grande cidade (Walter Ruttmann) ou o Homem com a câmera de Dziga Vertov, pois a organização do material não segue o desenrolar de um dia como o fazem esses dois filmes históricos, mas fica com o plano filmado de noite…
Tem um plano intrigante, pois ele parece inscrever uma imagem dentro da imagem, trata-se de um caminhão aberto dentro do qual dois homens trabalham, o caminhão está estacionado numa avenida, enquanto o metrô aéreo de Chicago passa em cima. Esse plano parece articular o interior ao exterior e vice versa, ele é como a figura de um filme que vai ao exterior buscar os rastros de uma interioridade possível. ( versão contemporânea do fundo de uma tela de Edward Hopper de um café, dando numa rua, de noite, cujo rastro poderia ser achado em outros planos do filme.)
O som nesse filme é verdadeiramente interessante, pois trata-se do som dos lugares mais não necessariamente do lugar no quadro, mas o do ponto de vista da cena filmada. Assim, os interiores dos escritórios fazem ouvir a rua. Outro detalhe que caracteriza Chicago: o multiculturalismo se desenvolve através de uma multiplicidade das línguas faladas, entendidas. A neve aparece no meio do filme.
A noite, a obscuridade não significa o fim das atividades, os aviões estão consertados, as fundições fundam, os carros transitam, o trabalho não para com a noite, ele reveste outras formas que não tiram nada da sua performatividade (ver os corredores de sala). Do trabalho passando pelos hobbies, a espera… diferentes categorias de atividades se espalham na cidade, que tenhamos consciência disso ou não.
Esse filme revisa um conjunto de situações no qual o trabalho tem um lugar preponderante, e nesse sentido ele ara um novo território pelo cineasta que alguns anos mais tarde com The Unstable Object se focaliza em três lugares de produções de objetos. Carros na Alemanha, pêndulos murais nos Estados Unidos e címbalos na Turquia.
yann beauvais, Bosphore, Istambul
1. Dan Eisenberg’s Coopertaion of Parts Mark McElhatten, in Daniel Eisenberg, Kinemathek n°77, p 31 Freude Der Deutschen Kinemathek Berlin 1992
2. Jeffrey Skoller : Shadows, Specters Shards, Making History in Avant-Garde Film, et plus spécifiquement sur Cooperaton of Parts: p60/68, University of Minnesota Press, Minneapolis 2005
3. C’est nous qui traduisons. « Coming of age at a time when the home movie and the personal archival was at the center of so many critical conversations, I became acutely aware of the lack of images and clear narratives in my own family past. My film work made attempts to address that lack, by emphatically noting that void, or by replacing the void with images that might evoke those that were never made. »
4. D.Eisenberg in Conversation with Alf Bold, Berlin September 1991, in Kinemathek 77, p 2, op citée.
5. Raymond Bellour se penche sur cette séquence dans le texte qu’il conscra à Daniel Eisenberg Kids on a Bike, in Post War The film of Daniel Eisenberg edited by K_Jeffrey Skoller,p 40-46, Black Dog Publishing London 2010
6. D.Eisenberg in Conversation with Alf Bold, Berlin September 1991, in Kinemathek 77, p 5, op citée.
7. Gaspard de la nuit est un triptyque pour piano de Maurice Ravel composé en 1908 d’après les trois poèmes d’ Aloysius Bernard. Le gibet en est la pièce centrale.
8. C’est nous qui traduisons, Since our sense of narrative has been constructed from the fragmented shards of multiple narratives, there’s a natural affinity to open forms, difficult structures, multiple interpretations, divergences, and diversity. This esthetic formulation seeks to express an understanding of a cultural condition that’s larger than one’s own state of mind. It’s not purely an expression, but also an analysis, and by extension, a critique. Post War op cit pa 178
9. Slavatore Sciarrino auquel l’œuvre de Luigi Nono est dédiée en donne cette interprétation qui semble se fobdre avec le projet deu cinéaste: Le passé sreflété dans le présent (nostaligica) provoque une utopie créatrice (utopica) le désir de ce qui est connu deb-vienne le véhicule de ce qui sera possible (futura) au travers la médiation de la distance (lontananza); The guardian