o expanded cinema de VALIE EXPORT
A posição de Valie EXPORT em relação ao cinema experimental e às artes plásticas é singular. Desde o início, ela escolheu trabalhar com cinema, mas não com qualquer tipo de cinema. Um cinema que ela chama de Expanded Cinema (cinema expandido). Conservaremos o nome inglês, pois se trata aí de uma compreensão do cinema, mais próxima da dos artistas plásticos dos anos 90; e radicalmente diferente da do cinema expandido dos cineastas experimentais do fim dos anos 60 e 70. Diferentemente da produção americana, dominada desde o fim dos anos 60 pelo cinema estrutural, mas também diferentemente da escola materialista europeia, encarnada pelo cinema britânico e alemão do início dos anos 70, Valie EXPORT privilegia mais o conteúdo do que a forma. Ela não tem uma dinâmica essencialista em relação ao cinema. Como ela mesma lembra, em uma entrevista de 1995: “Nunca fui ligada a uma interrogação puramente formal do material fílmico, mas sempre me preocupei com o conteúdo da imagem, isso sempre foi importante para mim” (1)
Valie EXPORT conhece os trabalhos de Peter Kubelka, e os dos acionistas vienenses, tanto os filmes de Otto Mülh, de Gunther Brus quanto os realizados por Kurt Kren. Peter Kubelka interroga o cinema a partir de seu próprio material. Trata-se de um cinema formal, um cinema materialista que manifesta o suporte a partir de seu funcionamento segundo seus elementos constituintes. Ele trabalha por redução visando ao universalismo, prefigura o cinema estrutural em alguns anos. Define esse cinema como métrico. Essa crença no universalismo será invalidada por Valie EXPORT e pela maioria das artistas mulheres dos anos 60.
A matéria-prima dos acionistas é o corpo em todas as suas expressões. Trata-se de uma insubordinação caracterizada que visa perturbar uma sociedade voltada para si mesma, fechada em um conservadorismo pós-fascista. Essas ações usavam e abusavam dos corpos. Utilizavam a mulher, a representavam, apesar de seu radicalismo reivindicado, como qualquer outro grupo, ou seja, ela era um objeto cujo único crédito era o de ser um dos elementos da performance, triturado pela instância dominante: o homem. Vemos como a prática de Valie EXPORT se singulariza em relação àqueles artistas. “Critico o papel das mulheres nas ações materiais realizadas por artistas masculinos (Como feminista, não me interesso pelos papéis dos homens).” Em suas performances, a ação “visa obter a união do ator e do material, da percepção e da ação, do sujeito e do objeto, o acionismo feminista procura transformar o objeto da história natural do homem, o material ‘mulher’, subjugado e mantido na escravidão pelo criador masculino, numa atriz e criadora independentes, ela é sujeito de sua própria história. Pois, sem a capacidade de se expressar por si só e sem campo de ação, não poderia haver dignidade humana”. Se os acionismos saturavam o sentido por sobrecarga, denunciando de maneira espetacular os tabus e a repressão da sociedade austríaca, eles o faziam ainda com meios que procediam da pintura gestual e de um determinado expressionismo. O que já não é o caso em Valie EXPORT, ou Peter Weibel.
Aqui estamos em presença de uma análise da comunicação que se expõe na projeção de um corpo compreendido como superfície receptora produtora dos fenômenos de socialização: “Meu trabalho deveria ser compreendido como uma crítica das ações materiais, uma resposta artística distinta para responder a essas ações materialistas.” Quais são, portanto, esses trabalhos que nos ocupam? Eles foram identificados como Expanded Cinema. Com Valie EXPORT, trata-se de ações cinematográficas: projeções de signos que se produzem fora do lugar de consumo clássico do cinema. “O conceito e a intenção dos primeiros trabalhos em Expanded Cinema consistiam em descodificar a realidade tal como ela é manipulada no filme. Levar o dispositivo cinematográfico para o espaço e para a temporalidade da instalação a fim de romper a bidimensionalidade da superfície plana. No cerne de minha análise, encontrava-se a desconstrução da realidade dominante, a desconstrução e a abstração do material, a tentativa de produzir novas formas de comunicação e sua realização. Meu trabalho empenhava-se em se afastar das formas de cinema tradicional, de sua produção comercial – produção convencional das sequências cinematográficas segundo a filmagem, montagem, projeção e substituí-las, em parte, por aspectos da realidade como novos signos da realidade. Apresentação, produto, produção, realidade formam um todo no Expanded Cinema. Na ação Cutting (1967-68), eu não cortava a película de celuloide, mas o corpo da tela iluminada pela luz do projetor. O som do corte (a raspagem), da respiração e do projetor sem filme constituem a faixa sonora. A iluminação, a revelação e as imagens eram, portanto, produzidas simultaneamente” (2). Quando Valie EXPORT redefine a compreensão do cinema como lugar de troca, ela ativa esse espaço como espaço de comunicação que habitualmente só funciona na doce neutralidade de seu entorno acolchoado, trata-se de um lugar de mão única, nesse uso do cinema não há reciprocidade. Valie EXPORT põe literalmente o cinema para fora das quatro paredes, ele sai de seu armário e de seu uso amortecido, se expõe. Tal exposição é particular, já que manifesta, a um só tempo, o dispositivo e se realiza através das ações precisas que só recorrem de modo bem secundário às ferramentas do cinema. Essa inversão desloca, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto do cinema na medida em que se refere aos usos dominantes do cinema criticando-os pelo simples fato de expô-los. Com essa inversão, Valie EXPORT procura restituir novas perspectivas de percepções para nossos sentidos amputados. Às vezes, ela interroga a questão da materialidade do suporte e dos processos substituindo alguns de seus elementos.
Outras vezes privilegia o momento da recepção do filme, ou seja, a interação com os espectadores induzida pelo dispositivo, em outras ainda, ela fará do corpo, o dela, um objeto de osculação, de Tapp und Tastkino à Glotis ou The Voice as Performance, Act and Body (2007). Com Abstract Film N°1 (1967-68), trata-se de produção e projeção de imagem segundo um sistema de troca particular que recorre a outros elementos naturais fazendo as vezes de tela, tais como pedras e árvores. Com esse trabalho, discernimos um vínculo entre Gina Pane e Valie EXPORT. O recurso a elementos naturais, tais como a água e a pedra, permite afastar o aspecto tecnológico em prol da relação entre natureza e cultura. Não é o mesmo gesto de Gina Pane quando ela desloca as pedras de um canteiro para expô-las ao sol em Pierres déplacées (1968). Esse gesto abre para Gina Pane a via da performance, da ação. Para ambas as artistas, o corpo é um sistema de signo. Para Gina Pane, ele é uma tela de projeção onde se inscrevem imagens pessoais e alheias, enquanto que para Valie EXPORT, ele é o lugar de determinações culturais, o lugar ou a lei da sociedade, gravada no indivíduo (3), mas esse corpo é capaz de se mostrar para o mundo e de se comunicar com ele. Cada uma dessas artistas trabalhará a tela conforme seus interesses. Notemos que ambas encenarão a dor, as imagens de mutilação, mas não estão no mesmo registro que os acionistas vienenses, e com razão, já que são mulheres. Com Instant Film (1968) Valie EXPORT e Peter Weibel parecem compartilhar com Fluxus a atitude e a proposta. Em Instant Film é o retângulo de plástico transparente que faz as vezes de filme instantâneo. “Instant Film é um meta filme, reflexo do filme e da realidade. Depois do desenvolvimento do café instantâneo e do leite em pó, conseguimos, finalmente, produzir o filme instantâneo, que é tela, projetor e câmera ao mesmo tempo. A junção deles depende do espectador”. Esse filme favorece a participação dos espectadores para existir como filme, quando, frequentemente, as instalações não recorrem à participação do espectador, elas o deixam de lado. Há na produção de Valie Export muitos projetos interativos, Ping Pong (1968) é um de seus melhores exemplos, enquanto Tapp und Tastkino (1968) ilustraria outra vertente da interatividade e do deslocamento das modalidades da recepção de uma performance. Com Ping Pong, a questão da recepção é abordada na como um jogo. Com uma raquete e com uma bola, o jogador mira alvos redondos que aparecem e desaparecem independentemente da reação do performer. Se Tapp und Tastkino precisa de um dispositivo particular, é porque interroga o cinema segundo modalidades distintas e, principalmente, põe em cena o voyeurismo inerente ao consumo cinematográfico. A pulsão escópica ativa atitudes e modalidades de apreensão que salientam o poder do olhar do homem em relação à mulher-objeto, objeto de todas as suas cobiças, a tal ponto que fixa as regras do olhar dela e do próprio dispositivo. Com Tapp und Tastkino, a artista inverte o processo de consumo do filme na sala escura. O olhar do voyeur não está mais protegido pela escuridão, engajado de maneira anônima para satisfazer seu prazer falsificado, aqui ele está engajado em ter seu prazer de verdade, publicamente, diante do olhar do outro, que o examina, mas também do público, que o vê fazer. Um dispositivo de troca, de comunicação se atualiza ao vivo. Vamos nos deter um instante nas diferentes apresentações de Tapp und Tastkino, realizadas por EXPORT. Se na primeira apresentação ela recorreu a um cúmplice, um ator que agarrava o cliente, na pessoa de Peter Weibel, na segunda Valie EXPORT recorreu a uma mulher como aliciadora. O que provocou as mais variadas reações, hostis em sua maioria. «Essa ação foi bem interessante, pois éramos duas mulheres, as pessoas ficaram muito agressivas. Pensavam que éramos prostitutas.» Poderíamos situá-las na mesma escala das provocadas por Aus de Mappe der Hundigkeit. Nesta última ação, a inversão dos papéis é mais acentuada na medida em que Valie Export anda com Peter Weibel amarrado numa coleira. Com Tapp und Tastkino Valie EXPORT quer, efetivamente, modificar a consciência das pessoas: “Nessa ação, na linguagem do filme, autorizo quem quiser a tocar meu corpo-tela, meus seios. Rompo com os confins socialmente legítimos da comunicação social. Meus seios já não eram parte da sociedade do espetáculo, esta última fazendo da mulher um objeto. Meus seios já não eram a propriedade de um só homem, ao contrário, a mulher tenta, com a livre disponibilidade de seu corpo, determinar sua identidade independente, o primeiro passo que vai do objeto ao sujeito”.
Essa ação encarna para Valie EXPORT “Os primeiros passos de uma mulher de objeto a sujeito. Ela mostra livremente os seios e não segue mais nenhuma prescrição social. O fato de tudo se passar na rua e de o consumidor poder ser qualquer pessoa, homem ou mulher, constitui uma infração reveladora do tabu da homossexualidade.» Encontramos um recurso à homossexualidade como marcador social em Menschenfrauen (mulher humana), em 1979, onde as duas mulheres grávidas, Anna e Petra, se beijam em um restaurante, provocando um protesto geral. Com Genitalpanik (1969) ela expõe seu sexo para a visão dos espectadores de um cinema onde entrou. Com uma arma a tiracolo, os cabelos arrepiados, pensa-se imediatamente em Angela Davis, que teria decidido atacar os machões de plantão, como deslocamento de reivindicação racial. A inscrição do político nesse trabalho é patente. Trata-se de uma atitude feminista: “Com Tapp und Tastkino, já havia esse confronto entre a análise da feminilidade e da imagem da mulher, do olhar sobre a mulher – tal como formulado mais tarde. Essa preocupação teve início nos anos 60, é um tema muito presente e muito importante.” Esse trabalho prefigura as propostas dos curtas-metragens dos anos 70. Tais questões, quanto à imagem da mulher, investem o lugar no qual a artista age, a partir dos quais Valie EXPORT atua, conforme determinados tipos de relações, determinadas regras e regulamentações sociais, para retomar seus termos. É o corpo da mulher, na pessoa de Valie EXPORT, que é interrogado, através de encenação que visa fazer uma voz ser ouvida: sua voz; a voz de uma mulher. Assim são compreendidas as peças como body and sign (1970), que perpetuam as ações precedentes, propondo uma imagem congelada cujo movimento inscreve o trabalho do pensamento. O equívoco do signo tatuado atua em vários registros, vários planos como também o fazem os dispositivos de vídeo e as fotografias que separam camadas sucessivas de partes de corpos. A foto, a performance e alguns filmes salientam ainda esses deslocamentos, que nos fazem passar do corpo de uma mulher ao de Valie EXPORT em prol de uma exteriorização de estados mentais, cujo vestígio pode ser lido segundo várias mídias. Trabalho da transferência, passa-se de uma superfície à outra, fazendo a tinta subir para ser reabsorvida ou impressa sobre uma superfície sensível, pele, película, papel. O signo faz sentido por seu próprio transporte.
Após um novo convite, no mesmo ano, em Munique, Tapp und Tastkino é mostrado em uma das praças da cidade. Nessa época, o feminismo ainda não preocupava Birgit Hein. “Para mim, havia o cinema estrutural, Freud e Marx.” Valie EXPORT antecipa a reflexão engajada, alguns anos mais tarde, pelas feministas anglo-saxãs. Seu Expanded Cinema fica à margem daquele dos cineastas do momento, mais preocupado com questões estruturais do dispositivo, com a materialidade do suporte do que com conteúdos que interrogam tanto o olhar quanto aquele que olha e investem campos excluídos, para não dizer proibidos. O expanded cinema da época, produzido antes de tudo nos Estados-Unidos, vinha da estética underground, tal como ilustrada por Andy Warhol em Plastic Inevitable, ou ainda por Events no Moviedrome, de Stan Vanderbeek, nos quais verdadeiras colagens, assemblages audiovisuais são elaboradas ao vivo. É preciso esperar os anos 70 para ver eclodir uma escola que trabalha os processos e investe as relações efetuadas pela projeção no espaço, o que está presente, antes de tudo, no cinema materialista britânico, e em algumas figuras importantes nos Estados-Unidos, como Paul Sharits e Michael Snow, para só citar duas delas. Inevitavelmente, as ações do Expanded Cinema de Valie EXPORT tornam-se contraditórias, ela manifesta outros questionamentos privilegiando, ao mesmo tempo, uma estética minimal. Elas se aproximam das ações da body-art, mas se distinguem delas por uma afirmação propriamente feminista. Valie EXPORT aventura-se na ONU, território relativamente intacto, onde tudo É possível, pois , tudo ou quase tudo, ESTÁ por ser feito. Devemos lembrar que o artigo essencial de Laura Mulvey, Visual Pleasure and Narrative Cinema, é publicado na revista Screen, em 1974. Nesse artigo, Laura Mulvey questiona, por intermédio da ferramenta psicanalítica, o trabalho patriarcal no cinema narrativo, e, mais precisamente, a representação das mulheres através do olhar dos homens. Valie EXPORT, entretanto, não é a única a interrogar e a inscrever a especificidade de uma fala, a traçar uma escritura feminista. Carolee Schneemann já abriu a via, esboçou caminhos, em conflito com as instituições. Suas ações e seus filmes exploram, de maneira explícita, representações sexuais, mas podemos dizer que ações tais como Meat Joy (1964) ou Snows (1967) participam de um determinado acionismo pictural.
Se compreendermos o trabalho de Valie EXPORT como um trabalho de resistência diante do conjunto de imagens das mulheres defendido pelo acionismo vienense, encontramos aí uma semelhança com os filmes de Carolee Schneemann e, principalmente, com Fuses, que vai de encontro à ideologia de Stan Brakhage. Schneemann, como EXPORT, não seguiam um cronograma, elas subvertem a arte para que suas vozes de mulher sejam ouvidas. Suas obras têm a particularidade de trabalhar a representação do prazer sexual, assim Fuses (1965), Plumb Line (1970) e Menstruation (1967), hoje perdido, e Mann, Frau & Animal (1973), de Valie EXPORT. A afirmação do prazer do feminino choca tanto o bom gosto como os hábitos dos homens, na medida em que já não se trata do prazer deles. O que fala, o que se mostra na imagem é o outro, a grande ausência. Essa fala é, antes de mais nada, política. Com Mann, Frau & Animal, e Remote Remote, ambos de 1973, Valie EXPORT explora registros mais pessoais e põe em cena a dor, a automutilação, o prazer. Mais uma vez, encontramos nessas encenações semelhanças com várias ações de Gina Pane. Nesses dois filmes, Valie EXPORT exterioriza estados mentais. Em um caso, o prazer, no outro, a dor. Em Mann, Frau & Animal, para retomar os termos de Juan Vicente Aliaga, Valie EXPORT explora o percurso do prazer individual, solitário e autossuficiente de uma mulher com um fim sangrento (estupro simbólico?) ao som de gemidos viris. A irrupção do sangue, a menstruação na imagem quebra um tabu. O que é chocante aqui, em todos os sentidos do termo, é o fato de mostrar, fazer ver, a um só tempo, o prazer, o orgasmo e a menstruação. Esse encontro na imagem precede em uns bons dez anos os trabalhos de videastas canadenses sobre a sexualidade das mulheres e sobre a ejaculação feminina em Nice Girl Don’t Do It (1990), de Kathy Daymond ou em The Sluts and Goddess Video Workshop (1992), de Maria Beatty e Annie Sprinkle.
Com Remote Remote, não é tanto o prazer, mas a mutilação que é exposta, e mais exatamente, a automutilação. O ato de cortar sua própria pele, ou seja, o cuidado estético bruto, a manicure, pertence aos códigos elementares da representação feminina. Em Remote Remote, o ato é prolongado na duração. Insistentemente, passa-se do cuidado ao maltrato, fere-se, inflige-se aos dedos tratamentos no mínimo sangrentos. Isso é feito com um estilete. Não apenas corta, mas insiste-se. A repetição dessas mutilações induz a percepção de uma dor para o público e remete ao temor da castração para os homens. Ela anula o uso patriarcal do prazer cinematográfico, desnaturando-o. A mão é lavada em uma tigela de leite, que expressa calma e purificação. A mistura desses elementos aparentemente opostos aparece com freqüência na obra de Valie EXPORT. Ela anula o conforto da performance quando sai de campo para nos deixar diante da imagem de duas crianças violentadas vestidas com pijama listrado, que evocam outras lembranças da sociedade austríaca contemporânea.
Esses filmes,próximos das ações do Expanded cinema, afastam-se dele, entretanto, pela utilização parcial, no que concerne Mann, Frau & Animal, de técnicas que mesclam diferentes suportes (fotos, grafismo) no mesmo filme. Valie EXPORT desenvolve, com o vídeo, dispositivos que unem, simultaneamente, vários pontos de vista que podem se encaixar uns nos outros para produzir um acontecimento específico. Assim, Split Reality (1970-73), ou Adjunct Dislocations (1973) e sua segunda versão (1973-78), que evocam um trabalho próximo ao de Dan Graham e serão formidavelmente orquestrados em Syntagma, com uma única tela. Os dispositivos com duas câmeras, habitualmente usados por Valie EXPORT, partilham com os de Dan Graham semelhanças de atitudes e de questionamentos quanto à percepção simultânea de uma ação através de dois pontos de vista. Assim, Roll (1970) e Helix/Spiral (1972) antecipam e lembram os dispositivos de tomada simultânea de Valie EXPORT. Nessa junção, de uma filmagem simultânea e de sua restituição sincrônica, é abordada a questão do fora de campo, como também a anexação do campo-contra-campo simultâneo. Não há mais distância, fica-se, a um só tempo, fora e dentro. Esse trabalho sobre a questão da simultaneidade dos pontos de vista é compreendido em relação à situação do cinema experimental austríaco da época. Como se podia ainda realizar filmes depois do cinema métrico de Kubelka? Como abrir outros horizontes para o cinema? É assim que se deve compreender essa interrogação em torno da simultaneidade e cujo primeiro vestígio é encontrado no filme de Hans Scheugl: Hernals (1967), no qual « procedimentos documentais e pseudo-documentais foram simultaneamente utilizados por duas câmeras situadas em ângulos diferentes. Cada fase de movimento foi dividida. Durante a montagem, cada uma dessas fases foi duplicada. As técnicas utilizadas para isso variam. O som também foi duplicado e, aí também, diversas técnicas foram utilizadas. Duas realidades diferentemente percebidas, devido as condições de filmagem, foram montadas em uma realidade sintética na qual tudo se repete. Essa duplicação destrói o postulado da identidade da cópia e da imagem. Perda de identidade, perda de realidade (esquizofrenia).” Encontramos preocupações semelhantes em Interrupted Line (1971), em 16mm e Interrupted Mouvement (1973), em vídeo. O cotejo de dois tempos, e os raccords, quase compressão de dois espaços em um, encontra sua realização nas assemblages fotográficas que os corpos fazem no espaço, submetendo, por assim dizer, o corpo ao espaço, algumas sequências de Syntagma e de Invisible Adversaries (1976) estando entre as ilustrações mais chocantes. A cena da escada em Syntagma e a cena de sono de Anna. Essa justaposição de planos similares, mas distintos, mesmo que apenas pelo fato de um ser a cores e o outro em preto e branco, é frequentemente encontrada nos trabalhos fotográficos de Valie EXPORT. Deslocar o olhar para localizá-lo em relação à questão do gênero; mas não era isso o que já era anunciado com Identité transfert, de 1968?
Com Invisible Adversaries, Valie EXPORT trabalha a narração. A abertura e o fim do filme evocam o último plano de Profissão Repórter, de Antonioni, no qual uma câmera sai de um cômodo para percorrer a cidade. Ela não é a primeira a se lançar numa aventura dessas. Com certeza, foi Yvonne Rainer quem impulsionou esse aspecto no campo do cinema experimental. Com Lives of Performer, de 1972, Yvonne Rainer deixa o campo coreográfico reforçando o emprego de elementos narrativos. Mas tudo isso é feito com distanciamento. Encontramos estratégias semelhantes em Valie EXPORT no que diz respeito à não-aderência de um personagem a seu papel, ou pelo jogo sutil de repetições defasadas como na cena do lado de fora do café ou no momento de um diálogo organizado por monitores de vídeo. Esse agenciamento de planos, que antecipa, freia e relança a narrativa, confere a esses filmes sua matéria de assemblage; constituídos de momentos mais ou menos narrativos, eles deslocam, por meio da mescla de elementos de diferentes procedências, a experiência do filme da narrativa para a própria trama. Em Yvonne Rainer, elementos autobiográficos estão lado a lado com ensaios e espetáculos de dança, já Valie Export incorporará ou recriará peças fotográficas que ela põe em situação. Para as duas artistas e em graus diversos, com esse trabalho cinematográfico, trata-se de ir além do filme estrutural, que estava se esgotando, ficando sem saída, quando indícios deixavam perceber alternativas a esse cinema. Para Valie EXPORT,tratava-se, antes de tudo, de introduzir formas e conteúdos da vanguarda no cerne dos longas-metragens. “Tentei introduzir nos filmes convencionais discursos alternativos de um artista das mídias. Eu queria encontrar uma maneira de criar uma polifonia com ajuda de metáforas visuais para ilustrar os diferentes processos psíquicos pessoais”.
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(1) Entrevista publicada (a tradução para o francês é nossa) no livro de Roswitha Mueller Valie Export Fragmens of the Imagination Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 1994.
(2) Valie Export in RM,p 219, op.cit.
(3) Pensamos imediatamente na aquisição da memória descrita por Nietzsche na Genealogia da Moral.
Texto: yann beauvais
Tradução: B³ / Eloisa Araujo