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por Jean-Michel Bouhours em  yann beauvais  40 anos de cinemativismo, organização Edson Barrus, B³, Recife Novembro 2014

Enquanto o presente nos leva a buscar sempre algo maior – grandes espaços, grandes museus para obras monumentais, o espírito de contradição me leva a encontrar satisfação no pequeno. Small is beautifull*, para retomar uma célebre fórmula. A constrição espacial produz uma forma de ascese que me convem. Finalmente, o monumental induz à facilidade de não escolher, de não hierarquizar. Falamos de catalogue raisonné, mas é razoável ser exaustivo? Então Viva o small, o tiny, o piccolito, o pequenito. A Boite en valise duchampiana terá sido, como muitos gestos em Duchamp, uma proposição visionária e programática.

Escolhas se impõem à valise, onde é preciso que tudo se reduza ao mínimo estrito do viajante. Esse princípio de redução química de um molho até o fundo, ou até uma «réduction à glace», também está na base da arte culinária, para exacerbar os sabores.

Mostrar 40 anos de atividade de yann beauvais – que não trabalhou somente em torno de sua própria criação, mas ainda em direção a outras e outros, que ele apoiou como programador, curador, crítico e historiador – em 80 metros quadrados de superfície de exposição, isso exige evidentemente escolhas drásticas. A obra de yann beauvais não será apresentada aqui em sua totalidade. Longe disso. yann beauvais de A à Z ainda está por ser feita; nos contentaremos com de y a b, penúltimas margens do alfabeto romano tomado ao inverso.

Minha escolha dirigiu-se a apenas três filmes de uma filmografia que conta com várias dezenas de trabalhos, no entanto, estes me parecem poder sintetizar três constantes em sua obra: a linguagem formal posta em obra a partir de R (1976), o ativismo que ele manifestou ao lado de movimentos border line da société, o cinema experimental e a causa das comunidades gay e lésbica, enfim sua relação com o Mundo através não de sua representação – o que Debord apontou como sociedade do espetáculo, mas de seu détournement; a explosãoou a ruina das media em sua função de causar cegueira ou fascínio. Começar por um R. Jamais perguntei a yann o que significava essa consoante abreviativa. Um R, ar do que, justamente? de uma música do silêncio da sala de projeção. Os ritmos da imagem produzirão por si mesmos uma música interior que estará verdadeiramente na intimidade de cada espectador. Uma aria de Jean-Sébastien Bach na qual a viola parece desestabilizar você em seu próprio corpo. Ao buscar no site do Light Cone a ficha do filme, encontro esse texto, do qual descubro, com surpresa, ser o autor. «A imagem de R é em preto e branco, clichê de um jardim de que pressentimos um passado esquecido mas glorioso, que hoje se livra à mera presença das ervas loucas. A imagem vibra, descrevendo um espaço geográfico cuja sequência final do filme dará uma versão truncada mas contínua. Desse modo, o filme responde a uma construção rítmica visual, elaborada com base em uma partitura que determina a presença ou ausência da imagem [negro], a ordem de sua sucessão e seu ritmo. yann beauvais elaborou sua própria escrita visual interpretando uma invenção a duas vozes de Bach. Ele se serve de um arquivo de imagens como gama; dito de outro modo, a panorâmica visual se torna um teclado composto de toques (clichês) que a partitura musical vai comandar. A distância entre as notas na partitura de Bach (em solfejo se trata do número de graus entre as notas que determinam os intervalos) define a distância entre as imagens: por exemplo, um terço (intervalo musical de 3 graus) corresponderá a uma sucessão de imagens deslocadas por um ângulo visual de 15 graus, assim como o ritmo. A partir desse tronco central inspirado pela invenção, yann beauvais concebeu variações livres, crescentes e decrescentes, tais que o autorisava a música barroca em que ele se inspira. R compõe, graças a uma imagem sincopada e ritmada, um espaço decomposto e surreal, fazendo surgir uma «memória», um afeto dos lugares que nenhuma panorâmica fluida e bem «lambi» teria permitido. A vibração, a cintilância exagerada dão a essa imagem um aspecto hipnagógico que reforça um cone branco de luz na borda lateral da imagem, devido a um defeito de vedação frequente nas cameras Bolex, e que, felizmente, tem função de lembrança da natureza luminosa da imagem cinematográfica e das propriedades específicas da difração da luz.»

Deke Dusinberre observava que o lugar, muito importante nesse filme, pois é envolvido por um grande mistério, é aquele de uma casa do século XVIII, diante da qual haviam sido executadas no Grande Século as obras de Bach. O passado parece estar em tudo: nesse preto e branco um pouco lavado, nas ervas loucas, nessa casa de que se pressente uma história mais prestigiosa que o presente, que parece não mais se realizar1. O filme se funda na metonímia do corte, que é de duas ordens. O corte luminoso provocado por imagens negras no curso da sequência, e o corte do cone branco que gera o retângulo da imagem cinematográfica, e desestrutura sua integridade. O corte é um problema próprio ao cinema; é necessário para que a imagem reproduza um movimento de maneira perfeitamente ilusionista. Está ligado a toda a história do cinema, de sua invenção técnica com a cruz de malta que iria permitir cortar o fluxo do avanço contínuo da película fílmica, à invenção da montagem que iria permitir com uma certa plasticidade inventar uma sucessão discontínua de espaços-tempos cinematográficos. O cinema é a arte do corte, por excelência. Buñuel et Dali inauguraram sua Obra cinematográfica com o grande plano do olho seccionado por uma lâmina pelo próprio Buñuel, em Un chien andalou (1929). Seu cinema devia romper com a ordem retiniana. Ora, apesar da profusão de imagens ditas fortes, violentas, esta em especial guarda toda sua capacidade de pavor. O olho (o órgão vidente) suporta todos os massacres possíveis, todas as atrocidades que o ser humano é capaz de conceber, menos talvez o espetáculo de seu próprio massacre2. Pois, nos diz Georges Bataille, a relação com o olho se situa imediatamente entre a sedução e o horror, na fonte das «reações agudas e contraditórias»33. O corte é constitutivo da construção da imagem segundo o modelo perspectivista no qual o quadro é «realizado» no plano que corta a pirâmide do raio luminoso que tem por cume o centro do olho.

Essa pirâmide visual torna-se cone de luz com Anthony McCall, em Line Describing A Cone (1973), que, apresentado no último Festival EXPRMNTL em Knokke Le Zoute, 1975, foi um choque para toda uma geração de cineastas, da qual eu fazia parte, assim como yann. A operação de McCall se inscrevia em um extraordinário movimento do expanded cinema na Inglaterra, em meados dos anos 1970, em que eram explorados os dispositivos de múltiplas telas, as projeções ampliadas, os espetáculos de sombras. O cone se tornará um símbolo de ligação para os cineastas que se organizarão sob a bandeira do Light Cone, estrutura de difusão que yann propõe à partir de 1982 com Miles Mc Kane em Paris, e que conhece um destino marcante, pois 30 anos mais tarde perdura e se amplia, adaptando-se aos contextos econômicos e tecnológicos da evolução das media de imagens em movimento. Esse cone, acidente da história de uma câmera com um defeito de vedação, faz signo em R. É o corte da navalha em plena vista, enquanto esse corte intervem ordinariamente entre duas imagens para que, diante da imagem projetada na tela, isso não venha à consciência. O corte de tesoura das cartas postais de Sans titre 84, onde o arco do triunfo é recortado e reconstituido em fatias como num scanner, levará yb à metáfora da fenda das imagens diferenciadas e dispostas em leque em New York Long distance (1994), e depois em Des rives (1998). Em dupla ou tripla projeção, em RR (1976-85), a fenda é vertical, ao longo da qual simetricamente cada imagem parece enrolar-se ou desdobrar-se à maneira de um quadro transparente de Carmontelle – a partir de seus rolos laterais. Pois o espaço «desenquadrado» de R – emprego voluntariamente esta palavra, talvez de modo errôneo, mas trata-se do termo usado por yann a propósito de sua própria obra: o cinema desenquadrado – que é um espaço de interstício e de fluxo descontínuo da matéria luminosa, e que parece miraculosamente ter desaparecido em proveito de uma recomposição fictícia que se aproxima perfeitamente da estética das panorâmicas. yann retomará as linhas das imagens em cada uma de suas instalações. O que são essas linhas de imagens: um fio, um traço mantido quase invisível a olho nu, mas tornado tangível pela dinâmica contraditória ou dialética das imagens. Nem mais nem menos: uma fronteira em que se materializam os conflitos de imagens. Estas últimas tem uma forte capacidade de simulação espacial, transformando-se em arestas de prismas, dando tanto a sensação de uma fuga das imagens segundo um eixo, ou ao contrário de uma progressão da imagem rumo ao plano da tela. No caso de RR ou de Quatr’un, o fato de que yb utiliza a mesma fonte de imagem, invertida e logo proposta como seu reflexo invertido (efeito do espelho) neutraliza o choque da linha-fronteira de imagens em proveito de uma harmonia de duas vias, em que se reencontra evidentemente a fuga de Bach. No caso de Quatr’un, a figura da cruz é dominante, dividindo o quadro do espaço de projeção em quarto retângulos. A horizontal privilegia a linha de horizonte e então a simulação de uma continuidade, enquanto a vertical permanece mais abstrata, como a linha de tensão dos ritmos das imagens. A instalação foi a ocasião de uma colaboração musical de Thomas Köner. O R que o compositor concebeu é um drone musical acrescido de uma espécie de murmúrio impossível de se identificar: poderia ser aquele de rotativas de imprensa cujos ruidos dos rolos de impressão se houvessem sido abafados quando se pensa ter recuperado uma dimensão mecânica do som, ou o barulho longínquo de uma cascata, quando o som parece de uma fluidez absoluta.

O aparecimento da Aids nos anos 1980 e a hecatombe que a doença provocou no mundo gay deram voz a yb. Ele se engaja com as palavras, com sua voz. Tu, sempre (2001) radicaliza esse recurso à linguagem nominativa, utilizando palavras de combate que invadem o espaço da exposição com frases difratadas sobre todas as paredes da sala em que a peça se apresenta. A criação sonora de Thomas Köner começa com uma espécie de barulho de multidão, que poderia ser o rumor de um estádio, ou o rumor do inferno de Dante:

« Lá, na medida em que podíamos ouvir,

Não houve gritos, só suspiros,

O Que fez o tremor de ar eterno.

Ele sentiu a tristeza sem o tormento

Experimentada por uma grande multidão

De homens, de crianças, de mulheres de todas as idades »

A Divina Comédia de Dante, O Inferno

Desse som, emergirá em torno do terço final do filme, a voz de yb.

Luchando, realizado em 2011, é um filme de uma rara complexidade. Ele se situa em uma linha de filmes que começaria com Spetsai (1989), em que o cineasta busca uma relação dialética, equivalente ao contraponto em música, entre imagens de viagem em momentos de emoção intensa diante do sublime da natureza, de uma paisagem urbana ou de uma situação, e um trecho discursivo. Essa dialética convoca as duas zonas do cérebro: o cérebro vestigial, solicitado pelo sentido da visão em um registro de sublimação e o cortex, cérebro cognitivo que mantem uma reflexão grave, para não dizer dramática, e, logo, dessublimatória. No caso de Spetsai, o texto de Guy Debord Comentários Sobre A Sociedade do Espectáculos tem função de prevaricar imagens idílicas captadas numa ilha do mar Egeu. A felicidade é apenas aparente; o perigo ecológico representado pela indústria nuclear é certamente invisível, então está ausente da imagem; no entanto, há uma ameaça permanente de que os intertítulos ativem a lembrança, à maneira de «warnings». O texto entrecorta o fluxo das imagens; sua leitura interrompe em intervalos regulares o modo visual: a leitura é um corte no seio de um modo de fruição visual.

Luchando também foi realizado por conta de uma viagem a Cuba, em 2009. É às vezes difícil separar a parte das imagens pessoais em meio às imagens de arquivo. Mas em todo caso, não se trata aqui de um filme de viagem. Talvez seja sua antítese? – já que põe muito lucidamente a questão das motivações reais de uma viagem. O que há em torno dessa iniciativa?, pergunta-se o artista.Trata-se da motivação de sentimentos que dizem respeito a um romantismo revolucionário da parte de um cidadão ocidental cuja geração foi trabalhada por teorias revolucionárias e marxistas, sonhando em mudar o Mundo à luz dos movimentos de liberação terceiro-mundistas, guevaristas ou castristas. Um romantismo emulsionado pela questão dos direitos do homem e pela sorte dos prisioneiros políticos e que o capitalismo – Lenin havia declarado: os capitalistas são capazes de nos vender as cordas para que nós os enforquemos – reciclou em «produtos derivados». Era essa a curiosidade? ou yb era ali, ele também, um turista sexual? Tantas questões lançadas sem cuidados nem tabus. A questão da condição dos homossexuais em Cuba é o tema do filme, sem que se possa dizer que seja central. A história política, o passado, o glamour da música cubana, tudo parece se encadear sem discernimento; a questão da perseguição dos homossexuais é telescopada por uma entrevista com Fidel Castro, como se a tentativa de centrar-se sobre esse tema fosse em vão, já que, reconhece o cineasta, a realidade é diferente e bem mais complexa do que mesmo o turista potencial mais informado poderia pensar saber. Com toda lucidez, o autor nos previne de que essa viagem participa de uma «experiência de double bind generalizada». O fantasma do ideal revolucionário disfarça o fantasma sexual. No entanto yb demonstra que a situação é mais complexa. O fantasma revolucionário só éeletrizado por Fidel em uma entrevista, que tenta demonstrar que o desenvolvimento pessoal de cada indivíduo é possível no contexto da Revolução. Mas Fidel velho e desgastado pelo exercício do poder centralizado, não tem mais essa sedução do herói que se opunha ao imperialismo yankee, na virada dos anos 1960. As imagens de arquivo do período da Baía dos Porcos e da crise dos mísseis nos lembram esse período bendito em que existia ainda uma «boa luta de classes» entre boas e más causas – uma luta entre o fraco e o forte. Nesse contexto, a magia de sua retórica sabia como alcançar os objetivos estabelecidos.

O corte está sempre em jogo com imagens em flash sobrepostas a outras imagens: o fluxo descontínuo é um fenômeno de eletrização da «sequência originária». Pois nesse filme a figura de estilo dominante é a sobreposição . Ela foi utilizada com muita frequência no cinema para figurar sequências de sonhos em Luis Buñuel, Germaine Dulac, René Clair ou ainda Jean Epstein… Em Luchando, a sobreposição lembra a impossível univocidade da realidade. Manifesta um desregramento contemporâneo dos pontos de referência do pensamento, agravado ou simbolizado pelo desregramento dos sentidos. Os fluxos de imagem demonstram pensamentos perfeitamente contraditórios. O comentário em off de um filme de propaganda é aí fragmentado por um testemunho contemporâneo sobre um estado policial que controla cada cidadão, incluindo os turistas que só verão desse país o que as autoridades tiverem por bem mostrar. A sobreposição sonora e visual tem várias funções. Ambas são a metonímia de um real manipulado: as manifestações a favor de Fidel Castro, onde os persecutados devem aplaudir seus persecutores, os turistas aos quais é apresentada uma vitrine do país, ou ainda a paisagem em ruínas de Havana, descrita por um cubano como um cenário destinado a lembrar o estado de Guerra do país contra o invasor imperialista. A sobreposição é também o paradigma de um embaralhamento por saturação de discursos perfeitamente contraditórios. As camadas de imagens subentendem que a superfície da imagem seria por si só uma aparência enganadora; uma simplicidade de leitura seria impossível aí. O princípio sedimentar da imagem arruina a ambição de uma unicidade do real e dá uma representação do double bind a partir do qual é concebido esse filme testemunho.

D’un couvre feu (2006). O historiador do cinema yb contribuiu largamento com o reconhecimento do cinema dito de found footage. Esse gênero instituído enquanto tal ganha relevo após a segunda guerra mundial, com personalidades tais como Bruce Conner, Raphael Montãnez Ortiz nos Estados-Unidos, ou ainda Maurice Lemaitre e Guy Debord na França. Esse cinema de montagens de planos ou sequências tomadas emprestadas e recicladas, conhece uma retomada de interesse no fim dos anos 1980 com Martin Arnold, Christian Marclay, Craig Baldwin, Keith Sanborn, e Bill Morrisson. Em 2001, com yann beauvais, organizamos no Centre Georges Pompidou uma manifestação com uma publicação, intitulada Monter sampler, l’échantillonnage généralisé que repunha em uma perspectiva histórica as problemáticas contemporâneas do arquivo, da reciclagem das imagens e dos sons e das questões que essas práticas colocavam para o campo estético, ético e jurídico (direitos de autor versus copyleft) . D’un couvre feu, realizado alguns anos mais tarde, diz respeito a esse campo do found footage, pois todas as imagens são tomadas emprestadas das medias comerciais: tv, e verdadeiramente sons do rádio. Os acontecimentos são aqueles que explodem em um dos subúrbios dos mais desfavorecidos de Paris, Clichy-sous-Bois, no outono 2006. A morte de um adolescente desses quarteirões, perseguido pelas forças da polícia, põe fogo no conjunto dos quarteirões urbanos da periferia, ditos difíceis. O modelo de integração da sociedade francesa herdada dos príncipes da Revolução Francesa, mostra através desses eventos sua falhas – para não dizer sua falência – que nem os poderes locais nem a sociedade em seu conjunto (intelligentsia confundida) quiseram ver. Esses eventos não são os primeiros, mas por outro lado eles ganham uma amplitude diferente nos fatos e em sua ressonância mediatica. A França aparece aos olhos do mundo como um país à beira da explosão social; assim ela foi descrita nas media americanas. yb não fez um filme a mais sobre esses acontecimentos. Ele recolheu no seio das media o que ele viu e escutou, analisou e recondicionou esses elementos. A linguagem do found footage conduz naturalmente a uma forma específica de montagem, em que os princípios de unidade (espacial, temporal, e até de conteúdo) são arruinados. Todo autor de filme de found footage leva de um certo modo o espectador a se deixar totalmente abusar pela manipulação que permite a montagem. Essa manipulação, que consiste em dar continuidade, sentido, lógica a encadeamentos de elementos heterogêneos, e que os surrealistas experimentaram com o «cadavre exquis» desde os anos 1930, foi recuperado como aquele do funcionamento do inconsciente. Ora essa análise não é mais operante hoje, quando somo capazes de ver Clock (2013) de Christian Marclay, como qualquer outro filme de ficção. O que era a representação de uma zona escondida do ser humano, com os surrealistas, transmutou-se em uma obra de espetáculo. É que o corte, que não está mais a serviço de um fio narrativo, é ele mesmo ficção. As cesuras entre os planos remonta à tradição da «montagem de atrações» definida por S.M Eisenstein, em que o cinema busca antes o golpe brusco entre diversas sequências montadas pedaço por pedaço, mais do que sua fluidez e a continuidade narrativa.4 Enquanto a reportagem de tv do mesmo evento teria «organizado» as palavras contraditórias dos protagonistas por um comentário que é no pior dos casos diretivo sobre o que se deve pensar, no melhor uma zona mediadora de posições contraditórias, yb põe lado a lado os discursos, sem «planos de cortes», deixando-os se enfrentarem no «corpo a corpo», quer as imagens provenham da guerrilha urbana que do poder político. Nesse movimento telescópico, ele procede a uma des-hierarquisação. A simultaneidade das palavras (uma verdadeira piscadela ao simultaneismo pictórico) dá conta com uma rara evidência do desmoronamento, para não dizer da inanidade de um poder político que após múltiplas «políticas da cidade» todas fracassadas – e houve até mesmo vários ministérios dedicados a isso! – é incapaz de analisar e que, como única resposta, opõe a ordem republicana e a retórica militar: o Estado de exceção e o toque de alerta. A forma do found footage, a montagem cut e abrupta constitui uma retórica idônia para arruinar a retórica militar. O rap, enfaticamente presente nesse filme, tem papel primordial enquanto expressão cultural. Os rebeldes, na maior parte vindos da imigração, se sentindo privados de tudo, reafirmam cada vez que «não são animais». Há essa luta por causas sociais, políticas, econômicas, urbanísticas, embora o sentimento de denegação de fazer parte da comunidade dos homens domine todas as outras causas. A música de rap, percebida geralmente como violenta, agressiva ou catalisadora dos instintos mais baixos, demonstra, ao contrário, a humanidade daqueles que quebram as cabinas telefônicas e incendeiam os carros. Com certa perversidade, yb «assassina» – a golpes de repetição e looppings da mesma sequência –, um Presidente cuja idade subitamente salta aos olhos, cortado da juventude do país que ele dirige, sem compreender mais nada. yb faz dele um pobre ator [ slameur] cuja retórica guerreira é terrivelment pobre, do ponto de vista semântico. Essa indigência do discurso político entra em conflito direto com a riqueza dos textos de Som de Preto, de Amilcka e Chocolate e de Jeune de banlieue, de Dizis.

Em torno desses três filmes, a boite en valise yb-iana contem sons, documentos, revistas, partituras que darão conta de um itinerário rico, onde o fazer (sua obra) se imbricou totalmente em outras atividades, de historiador, de crítico, de programador, de curador ou ainda de simples militante. Essa boite en valise pode ela mesma ser a caixa de Pandora dando acesso ao todo.

Jean-Michel Bouhours

Tradução: Cecilia Cotrim e yann beauvais

 

** em inglês no original. [N.T.]

1yann beauvais « Manifestement » in Liu Yung Hao Yann Beauvais le cinéma décadré, Centre Pompidou/Afaa, 1999, p 85.

2 Ver a esse propósito o filme de Andrej Zdravic, Phenix, 1975.

3 Cf. Georges Bataille, Documents n°4, Paris, setembro de 1929.

44 Jacques Aumont/Michel Marie Dictionnaire théorique et critique du cinéma Paris, 2005, p 12.

Author: Edson Yann

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